Carla
Após examinar as telas em sequência eu tive uma súbita compreensão - ou insight como se dizia na faculdade -, daquelas obras de arte diante de mim.
Cleise e mesmo Felipe estavam ali , retratados em cenas furtivas onde não sabiam que eram alvo do olhar artistico de Clay.
Ainda que eu adivinhasse a resposta , precisava confirmar minha análise :
一 A Cleise sabe que foi retratada nas diversas fases da gravidez ?
一 É claro que não, ora ! Era para ser uma surpresa e ...
Eu não disse nada, mas mesmo assim ele bufou ao ver meu olhar de descrença :
一 Certo , Carla ! Não foi só por isso !É que eu não sabia se ia ficar bom mesmo! Era meu primeiro retrato e nunca estudei pintura pra valer...você sabe disso...A primeira foi uma inspiração que surgiu do nada, sabe? A gente tinha discutido e aí. ..
Ele parou de falar e fechou a cara. De repente, começou a esbravejar :
- Não me olha assim não! Você me perguntou sobre os retratos, não foi ? E estou falando sobre eles. Porque esta com essa cara de quem não acredita numa só palavra que eu disse?
- Eu, Hein! Mas eu nem te interrompi Clay! Sem essa !
- Sem essa você! Desde que se formou em psicologia ficou toda cheia de si achando que sabe tudo de tudo que acontece com a gente.
Se não quer saber do que tenho pra falar e vai ficar duvidando das minhas explicações , vou ficar quieto e voltar pra minha tela !
- Clay,.por Deus ! Você está muito chato viu ? Não é à toa que está tão difícil de você se entender com a Cleise. Está totalmente na defensiva Clay e...
- Eu não estou na defensiva porra nenhuma ,Carla ! - ele vociferou , antes de jogar o pincel dentro do pote com água.
A água respingou sobre a tela e sobre o avental dele
- Para de me analisar, merda! Não sou seu paciente!
Eu fiquei quieta , não só para ele se acalmar como para conseguir ler a cena diante dos meus olhos...
O avental dele ,que sempre fora de um branco imaculado, agora estava todo respingado de tinta .
Esse não era o Clay que conheci, maníaco por limpeza e organização e que me deixava louca porque sempre que eu procurava algo nunca estava onde eu deixara, depois de passar pela inspeção Clay.
Ao invés disso, agora ele pegava tudo e resolvia arrumar pra depois eu não conseguir achar mais nada dentro do apartamento!
Quantas brigas tivemos motivadas pelo senso de organização de Clay em ação? Meu amigo só poderia ter sido abduzido por alienígenas que deixaram esse cara insuportável no lugar!
Levei os dedos indicadores e polegares até as têmporas e massageei-as para me acalmar .
O problema estava ali e se não era tão fácil de perceber. ..Entender era bem simples!
Ele não estava lidando nada bem com a chegada de Felipe e Cleise que por sua vez , estava estafada.
E imersos no problema até a raiz dos cabelos , não conseguiam enxergar o que para mim parecia ser tão óbvio.
Eu sai do quarto para respirar e não disse nada.
Dirigi-me à cozinha.
Atarefada , tia Cleo se movimentava de cá pra lá e nem reparou na minha presença.
E a música que estava sempre tocando no rádio ou saía do violão afinado de Clay , embalando nossas brincadeiras até tarde da madrugada...Adorava cozinhar ouvindo música... Onde foi parar tudo ?
A casa estava triste e o resultado estava ali , bem diante de nossos olhos. Sentei na cadeira da cozinha .
Aquele que chegou a ser o meu lugar preferido do apartamento também estava diferente .
Projetada originalmente no estilo americano,,a cozinha de outros tempos era uma extensão da sala.
Um balcão de madeira servia tanto como divisor de ambientes e aparador dos pratos na hora da refeição como era perfeito para receber o preparo de alguma refeição ligeira.
Eu conheci bem aquela cozinha em outros tempos .
Durante um ano preparei os pratos que acompanhava nossos momentos de brincadeira, nossas conversas ...A gente brigava? Com certeza ! Mas nunca experimentamos esse nível de tensão.
E o que é mais estranho é que tudo isso está justamente acontecendo agora-naquele que deveria ser o momento mais feliz na vida de todos .
Eu precisava agir mas não não sabia o que fazer. ..Não ensinam isso na faculdade!
- Oi , minha querida ! Está aí há muito tempo ? Não vi você chegar...
- Oi,tia Cleo! A coisa está meio tensa lá dentro né? Deixei aqueles dois e vim aqui para respirar um pouco....Não sabia que estava tão difícil assim! Se continuar desse jeito nem sei o que vai acontecer...
Cleo enxugou as mãos no pano de copa pendurado num puxador fixado no azulejo sobre o fogão e veio até onde eu estava.
Puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado :
__ No início eu tentei conversar com cada um em separado mas ficou tão difícil que eu me afastei um pouco. Clay está irreconhecível. Ele e a Paula mal se falam desde que nos separamos e ela se casou com aquele cara . ...Mas não quero falar nisso , se não se importa...
Suspirou com pesar antes de emendar a fala para que eu não tivesse tempo de perguntar nada :
__Bom, vamos ser francos : nenhum dos dois estava pronto para ser pai. Nada disso é dito claramente durante curso de gestantes ...Nem nas inúmeras revistas que Cleise lê para tentar entender esse momento. Como se fossem falar sobre a parte real da maternidade ..
" Por outro lado , não é sempre assim . Se nem todos os momentos são de alegria também não são só de tristeza . Eles precisam conversar mas já não sei o que fazer. Clay se tranca naquele quarto há dias feito um adolescente e não me permite entrar lá nem para arrumar. Sei que ele tem dormido lá também, porque eu o vi levar lençol e travesseiro para lá. Pensei que seria durante o período de resguardo e que isso logo se resolveria . Mas essa fase já passou e ele continua agindo assim. Não são mais um casal...Você já é adulta, minha querida , não preciso ser mais explícita, não é? - Disse, piscando o olho".
Sorri e me senti corar. É estranho falar de sexo com tia Cleo. Minha mãe nunca falou sobre isso ...Quer dizer...falava sim.Que eu deveria permanecer virgem até o casamento e ela não ficou nada satisfeita quando fui morar com Mateus um pouco antes do casamento. ..Eu temei e o resultado ? O canalha do Mateus resolveu me trair naquela que seria nossa cama ...A viagem marcada pra lua de mel ...A vergonha ..Não quero lembrar desse passado....
__ Carla ! Carla! Está me ouvindo ?
__ O quê? Ah! Que foi Clay?
__ Estou tentando te falar faz um tempão mas você estava tão longe que não me ouviu...
"Dai-me paciência que não quero brigar !"
__ Fala !
__ Queria te pedir desculpa ! Vamos fingir que nada daquilo aconteceu lá dentro?
Sorri. Então, de um jeito bem teatral ele fez cara de surpresa antes de dizer :
__ Uau, Carla , quando chegou da Bahia ?Era só ter avisado que eu ia te buscar de carro no aeroporto!Como foi de Viagem? E a tia Gisela e tio Carlos , estão bem ?Seu irmão Rodrigo ?
Entrei na brincadeira e respondi sem afetação. Estava mesmo com saudade do meu amigo Clay e não desse cara destemperado que eu encontrara no Ateliê. Então ele deu a deixa :
__ Já que você voltou eu não vejo problema em levar meu ateliê para a casa da tia Cleo se ela não se importar , é lógico. Assim você pode reassumir o seu quarto.
Pensei nas implicações que essa proposta poderia trazer . Seria o empurrãozinho que faltava para ele retornar para o quarto do casal ?
No mesmo instante concordei com a cabeça.
- Vou ter que sair para levar o Akira para passear. Quer me acompanhar? Podemos conversar. ..
Tia Cleo se levantou satisfeita. Mexeu na panela e comentou :
- Antes vou dar uma olhadinha lá no quarto para ver se a Cleise precisa de ajuda...Viu que está um silêncio naquele quarto?já volto.
Ela voltou poucos minutos depois.
- .Estão os dois dormindo! Finalmente Cleise conseguiu dormir ! Podem ir tranquilos!
- Obrigada Tia Cleo! E enquanto a gente vai lá embaixo passear com Akira , a senhora pode ajeitar a casa e até mesmo o meu quarto ,não é?
Clay me olhou um tanto reticente mas pareceu disposto a manter o bom clima que reinava agora então não retrucou.
Abracei tia Cleo e sussurrei em seu ouvido para só ela escutar :
- Vai lá e olhe as telas que Clay pintou. Principalmente a que esta em fase de conclusão no cavalete Depois a gente conversa sobre isso tá?
Clay abriu a porta e Akira saiu todo alegre puxando a coleira em direção ao elevador .
Talvez fora daquele ambiente opressivo meu amigo conseguisse falar sobre aquilo que o afligia . É uma chance ...Quem sabe dá certo!
Eu estava exausta . Mal acabara de chegar de viagem e me deparei com toda aquela confusão.
Porém, eles precisavam de mim. E o descanso vai ter que esperar !
Ass: Carla